O bolo na mão do lobo, que não é bobo

Há uma expressão popular, lobo em pele de cordeiro, utilizada para caracterizar aquele que se traveste de simpatia, boa índole, bons propósitos, postura de defesa do interesse coletivo para angariar simpatia e colocar em prática um determinado objetivo, quase sempre a serviço de interesses nada altruistas. O lobo (que nos perdoe o animal utilizado na alegoria) enreda seus interlocutores com um discurso ilusório, sedutor, aparentemente pautado em bons princípios e busca fazer crer aos referidos interlocutores que quem questiona sua atitude é incapaz e indigno. Muitas vezes o lobo quer também fazer crer que aquilo que existe não presta para, assim, a pretexto de executar melhorias, colocar-se como defensor do bem, desmontar e fazer como lhe aprouver.

A alegoria acima se aplica à Administração Municipal de São Paulo que recém começa. Insufla, sem mesmo conhecer o que existe, a desqualificação de construções que são resultado da conquista da sociedade e da capacidade de trabalho daqueles que a realizam. Subestimam ainda a inteligência cidadã como se terceirização, quarteirização, privatização e organizações sociais não se fundamentassem em transferência de recursos públicos para a iniciativa privada.

A bola da vez são as bibliotecas municipais (51 de bairro, uma biblioteca metropolitana especializada em literartura infantil e Juvenil – Monteiro Lobato, 14 pontos de leitura, 13 bosques de leitura e 12 ônibus-biblioteca que percorrem 72 roteiros, além das cinco unidades metropolitanas do CCSP – Biblioteca Sérgio Milliet, Biblioteca de Artes Alfredo Volpi, Biblioteca Louis Braille, Discoteca Oneida Alvarenga e Gibiteca Henfil – que representa irrisórios 4,57 % do orçamento da SMC) e as demais estruturas do Centro Cultural São Paulo, que pretende terceirizar, a toque de caixa, entregando sua gestão e recursos públicos a empresários. Trata-se simplesmente do maior sistema de bibliotecas públicas da América Latina e administra o maior número de equipamentos da Secretaria Municipal de Cultura.

Qual pode ser o propósito de um empresário que pretende entregar o patrimônio público a seus colegas também empresários? Se a sociedade já está farta com os rumos da política, o mesmo se aplica aos empresários que sempre se acumpliciaram a grupos políticos na apropriação voraz dos recursos públicos. Como sabemos, diferente da esfera pública que objetiva o bem-estar da sociedade como um todo, o empresariado opera com a lógica do mercado e da lucratividade e não dá ponto sem nó. E é por isso mesmo que muitos deles sempre se associaram aos políticos que defendem seus interesses. Assim, se aliam a estes no financiamento de suas campanhas, de olho nas benesses que poderão auferir com a eleição dos patrocinados. Nesta lógica, o patrimônio, o acervo e os recursos públicos transformam-se em moeda de troca para atendimento do interesse privado sobre o público, particular sobre o coletivo.

As OSs (Organizações Sociais), como aquelas às quais a Administração pretende entregar as nossas bibliotecas e o Centro Cultural São Paulo, possibilitarão na prática o repasse, para a iniciativa privada, do gerenciamento dos recursos públicos e dos serviços a serem prestados, entregando a elas também a estrutura e o patrimônio já construídos pela sociedade. A flexibilização pregada para defesa de tal implantação objetiva desqualificar os mecanismos de controle exigidos na esfera pública e que não foram estabelecidos à toa. Tais mecanismos objetivam resguardar a lisura dos processos de administração dos recursos públicos. Se com eles já se verifica a prática de corrupção que cada vez mais vem à tona no noticiário nacional, não se pode negar que são ainda mais gritantes os escândalos envolvendo as estruturas terceirizadas (a exemplo do próprio Teatro Municipal de São Paulo, um único equipamento que corresponde a 18,92% do orçamento da SMC), algumas até mesmo quarteirizadas, com agravantes ainda mais sérios de precarização dos serviços oferecidos, da condição de trabalho e da remuneração dos quadros. Uma lógica de mercado violenta que objetiva tão somente o lucro donde, se as citadas organizações fossem efetivamente sociais, eticamente não deveriam sequer auferir. Por que? Porque neste caso o investidor não lucra ou, como bem disse um cientista político, “o dinheiro é público, mas o lucro não!”.

E para além da transformação de patrimônio e produção simbólica públicas em matéria de lucro, é uma aberração tornar a gestão municipal da cultura, que deve observar a democracia e pluralidade em sua formulação e execução, em resultado da iniciativa e visão de mundo de grupos privados. Com recursos públicos!

A intenção de privatizar, envergonhada, sequer é assumida, mas não há por que se enganar. As bibliotecas, assim como outros equipamentos, podem estender seus horários e oferecer mais atividades, mas isto não implica entregar sua coordenação para as OSs. Estas só se justificam, justamente, para substituir a gestão pública, que deve ser feita por agentes públicos, concursados e qualificados e não por agentes privados, que não se submetem a princípios de publicidade e de efetivo controle social, como já acontece em outras áreas do serviço municipal, como Saúde e Assistência. Não fosse para assumir a condução administrativa da política, a OS seria desnecessária, já que ela só serve a este objetivo.

A propalada intenção de aumentar atividades e ampliar horários de bibliotecas servem, precisamente, como argumento falacioso para ocultar um processo danoso de destruição do corpo técnico municipal, que se materializa na ampla precarização de meios de trabalho e na ausência deliberada de reposição de pessoal, mediante concurso público. São centenas de cargos vagos não preenchidos, dentre estes os aprovados em concurso público recente, deliberadamente não chamados pela Administração.

Essa precarização planejada é argumento de desmoralização do servidor público e da condução pública da política social, servindo, aos olhos do público, como o motivo para substituir a condução da política social pela iniciativa privada, em lugar do público.

A liquidação dos quadros públicos de carreira da Administração, não somente acarreta sérios problemas a estes, com a corrosão dos seus salários, destruição de seus sistemas de Previdência e situações reiteradas de assédio, mas compromete a política de Cultura no que é essencial, sua continuidade e qualidade.

Em lugar do servidor público concursado e formado em programas internos e externos, entregam-se os equipamentos a trabalhadores geralmente precarizados, semiformados e temporários, não raro presos a vínculos políticos particulares. As práticas formativas contínuas, críticas e criativas, serão crescentemente substituídas por atividades de fruição, pequenos e grandes espetáculos, cujos papéis reservados ao público são de espectador e consumidor. E como se trata de política voltada ao entretenimento, as ofertas tendem a ser barateadas, de baixa qualidade, reproduzindo o que o Estado já faz com as demais políticas sociais, corroendo-as e precarizando-as.

Neste contexto, é bastante provável também o acirramento da já grave condição de precarização das bibliotecas e de suas atividades técnicas, inclusive com a desvirtuação de sua destinação e propósitos, conforme estes estão definidos, inclusive, em política municipal de leitura e informação norteada em eixos e metas que envolvem programas de formação de leitores, mediação qualificada de leitura e informação, educação continuada dos quadros, desenvolvimento e avaliação de acervos, articulação cultural dos equipamentos com as comunidades e parceiros dos seus entornos, interação com as diferentes linguagens e manifestações, apoio à produção cultural local e à economia do livro, adequação dos espaços à natureza das atividades desenvolvidas, dentre inúmeros outros nichos e linhas de atuação já existentes e que demandam continuidade em lugar de desmonte.

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