Existem habilidades e competências que se situam na esfera do pragmatismo lugar comum, pautado no olhar curioso do amador. Tal olhar não deve, a priori, ser qualificado como nocivo ou inválido. A sua validade está sujeita a uma lógica de avaliação que considere a existência ou não de sentido naquilo que se propõe e se a sua aplicação é factível de resultado prático.
Organizar acervos, ouvir e entender a perspectiva do público, avaliar os recursos disponíveis na biblioteca e fazer a ponte entre a demanda e os acervos, oferecer abordagens alternativas e fomentar a formação de público leitor nas diversas linguagens e no sentido de constituição de sua autonomia como fruidor e pesquisador são parte das atribuições dos profissionais bibliotecários e são objeto tanto da formação acadêmica destes últimos, quanto da sua formação em serviço e educação continuada.
Isto implica que este fazer profissional, embora muitas vezes não esteja visível para quem está de fora, é, no entanto, norteado por competências e habilidades qualificadas, inclusive (e não menos importantes) aquelas necessárias à disseminação da leitura e informação e ao estabelecimento de interlocução com o público, com os parceiros e com as instâncias da administração.
No entanto, havemos sempre de questionar quando aquilo que poderia ser uma contribuição ou sugestão de trabalho pautada no referido pragmatismo implica na realidade uma intervenção direta naquelas atribuições que são, por ofício e por força de lei, responsabilidades de carreira.
Todo este preâmbulo objetiva contextualizar a surpreendente (para não dizer outra coisa) determinação comunicada pela CSMB – Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas, de uma ordem de serviço do gabinete do secretário da cultura para a área de bibliotecas – eufemisticamente qualificada de orientação, com prazo de execução.
Conforme esta, os acervos de literatura das bibliotecas municipais devem ser, a partir de agora, organizados genericamente como literatura brasileira e literatura estrangeira e, dentro destas, em ordem alfabética de autor. Com que objetivo? Informou-se que a medida busca aumentar o público das Bibliotecas em 15%. De que cartola foi retirada a estimativa e quais os parâmetros de mensuração empregados, não foi informado. Fica fácil estabelecer meta desta maneira.
Certamente que nosso colega bibliotecário Jorge Luís Borges, deve estar, a esta altura dos acontecimentos, se revirando no túmulo em face do retrocesso em termos de organização de acervos e da ausência de sentido de tal determinação. Mais que isto, a interferência, carente de qualificação, no exercício profissional da biblioteconomia, este regulado por Lei Federal que determina seu campo de ação, a exigência de qualificação e o domínio do conhecimento no campo.
Biblioteconomia é ciência e constitui-se uma ciência porque é composta por um corpo de conhecimentos adquiridos, sistematizados e testados ao longo da história da civilização. É importante lembrarmos também que a natureza e o campo de ação da cultura, um objeto de trabalho indiscutivelmente nobre, e, também, indissociável do processo civilizatório, exige, necessariamente, o estabelecimento de interlocução entre os atores envolvidos no processo.
A ordem informacional do acervo se dá em consonância com parâmetros de organização adotados na quase totalidade das bibliotecas públicas no mundo inteiro, inclusive aquelas que se configuram referência na área e não são questionadas pelo uso de um método cujas eficiência e eficácia foram e continuam sendo testadas ao longo do tempo. Por este motivo é um sistema em constante evolução e aperfeiçoamento. Deve-se ressaltar ainda que a organização de uma biblioteca difere substancialmente daquela de uma livraria. Sua organização temática vai muito além da organização por autor.
Como sistema, o método utilizado nas Bibliotecas Municipais se fundamenta numa ordenação lógica e dialógica que, no caso de literatura, leva em conta não somente as duas grandes categorias determinadas na ordem de serviço acima citada. Isto porque, o tratamento da produção e informação literária agrega aspectos de gênero, estilos, cronologia, forma, tratamento, movimentos, autoria, dentre outros, cuja disposição organizacional por si só já constitui um modo de mediação de leitura e informação. E ela é bem diferente daquela da livraria porque os materiais são tratados como acervo e não como mero estoque.
É importante também salientar que o público da Biblioteca se ressente muito mais com o descompasso entre a aquisição de acervos e as produções do conhecimento e do mercado editorial. A verba destinada para desenvolvimento de coleções nas nossas bibliotecas é irrisória e incompatível com a dimensão e a importância do Sistema Municipal de Bibliotecas para a Cidade e para o país. É fundamental que, ao se falar de desenvolvimento de coleções, tenha clara a perspectiva adotada. Isto porque, muitas vezes, o pragmatismo lugar comum considera que a formação dos acervos das Bibliotecas é uma coisa aleatória. Pior ainda, considera que cultura não é obrigação de Estado e, não sendo obrigação de Estado, não requer a destinação de recursos financeiros para o seu cumprimento. A seleção de materiais adquiridos por compra, doação ou permuta é norteada por parâmetros relacionados à natureza da instituição e o perfil do seu público, pela demanda atendida ou latente, pelo enfoque, pertinência, atualidade e condição física do material, dentre inúmeros outros fatores que são considerados pelos profissionais nas tomadas de decisão para seleção de acervos.
Interferir na definição da ordem informacional da biblioteca é tão nonsense quanto dizer que seus acervos serão desenvolvidos a partir de doações recebidas aleatoriamente. A título de comparação, assemelha determinar que um médico não deve prescrever antibiótico para um paciente com infecção persistente porque laxante é mais popular ou que um engenheiro deve aumentar a proporção de areia na produção de concreto, de modo a tornar uma obra mais viável economicamente.
É para contrapor ao voluntarismo que se sobrepõe ao conhecimento e competência, e, além de tudo, alia falta de experiência com desinformação, agravado com a falta de disposição para o diálogo com os especialistas como os da SMC, que os exercícios profissionais são regulados por Lei Federal (4.084) e o preenchimento de cargos, por força de Lei Municipal (16.119) se subordina a lei maior. Ambas exigem comprovação de titulação acadêmica e registro em ordem de classe para exercício da profissão. Não se trata, portanto, de uma terra sem lei, e, como referido acima, de acatar a vontade daqueles que temporariamente encontram-se em posição de mando.
O profissional no exercício de suas atividades pode e deve estar aberto à interlocução e, nos casos em que entenda as sugestões contribuam para melhoria do atendimento e sejam de interesse do público também pode e deve aceitar tais sugestões. Quando não há interlocução e as ordens se contrapõem ao referido interesse público, por força de Estatuto, constitui-se atribuição do agente concursado e no exercício da função pública, a responsabilidade de apontar quando tomadas de decisão e ordens de serviço não agregam utilidade e benefício. No caso em questão, indiscutivelmente implica um retrocesso para as Bibliotecas Municipais.
O que há de concreto como política cultural da administração em curso até agora é o corte de verbas e a ausência de interlocução.
Há problemas no Sistema de Bibliotecas da Cidade de São Paulo? Indiscutivelmente que sim. Eles, no entanto, resultam de uma sistemática carência de recursos. Trata-se do maior sistema de Bibliotecas da América Latina, agrega mais de 50% dos equipamentos e serviços da SMC. De concreto temos que representa a destinação de reles 4,58% dos recursos orçamentários da pasta, sendo que esta representa apenas 1,19% do orçamento municipal.
Não é nem necessário falar que é muito pouco. Além disto, maioria das Bibliotecas de bairro contam com três ou quatro funcionários em suas equipes, não há vontade política de resolver o problema com a nomeação dos profissionais já aprovados em concurso público e também não se vê estes auto-conclamados gestores falarem em investimento (recursos humanos concursados, materiais, acervos, instalações, programação cultural) em biblioteca.
Alguma coisa está fora da ordem! E não é da ordem informacional.
Anis PMSP – Todos os direitos reservados.
Compartilhe isso em sua rede social: